quinta-feira, 19 de abril de 2012

Cesário Verde - Nevroses / Contrariedades

Nevroses / Contrariedades

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
            E agrado a pouca gente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos;
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
             E os ângulos agudos!

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
             E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
             Mal ganha para as sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa d’um jornal me rejeitar, há dias,
             Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
              Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
               Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
                 Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei composições nenhumas,
Senão, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
                Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
                 Deliram por Zaccone.

Um prosador, aqui, desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
                 Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nosso literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
                Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
                E fina-se ao desprezo!

Nem pão no armário, ó Deus! Chama por ela a cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a a cantarolar uma canção plangente
                Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
                 Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
                   Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
                   Que vida! Coitadinha!

                                                                                       1876


Sugestão de resposta às questões de leitura orientada do manual Plural 11:

Página 262

1. O sujeito poético está sentado à secretária e daí avista a janela de um prédio onde mora uma infeliz engomadeira. A luz está acesa (“Vejo-lhe luz no quarto” – v.67), portanto é de noite. Estes são elementos realistas, uma vez que a poesia de Cesário se apresenta como um lugar de observação do mundo e da vida. Mesmo sentado à secretária, em sua casa, é o olhar que o guia. Assim, articula o real objetivo observado com a subjetividade do seu sentir e do seu pensar. Cesário é realista porque o real é o ponto de partida para os seus versos.

2. Os planos alternados são o do sujeito poético e o da engomadeira. O poema começa com o plano do “eu” lírico, sendo interrompido nas estrofes 3 e 4 pelo plano da engomadeira. Continuam os planos a cruzar-se: o do sujeito poético nas estrofes 5-12 e 15-16; o da mulher nas estrofes 13-14. Na estrofe 17, assistimos a um paralelo entre os dois planos. Distinguimos os planos pela pessoa verbal utilizada em cada um: a 1ª pessoa no 1º plano (ex.: “Eu hoje estou” – v.1); a 3ª pessoa no 2º plano (ex.: “Chama por ela a cova” – v.53).

3. Inicialmente, o sujeito poético está irritado, ansioso e com dores de cabeça. Incomoda-o “Tanta depravação nos usos, nos costumes!”. Depois revela-se “cheio de raivas frias” face à rejeição dos seus versos, o que é percecionado pelo “eu” lírico como uma contrariedade. Finalmente, alcança algum grau de paz, quando lhe passa a “cólera” e finda “sem azedume”.

4. Neste poema, o poeta critica as más condições de vida dos trabalhadores: a saúde deplorável, a fome, as longas horas de trabalho. Ao fazer esta crítica, o poeta mostra solidariedade em relação a estes trabalhadores desfavorecidos, embora não pertença a esta classe social. Transparece assim a sua inclinação política, de feição republicana.
   O poema denuncia ainda o compadrio e o protecionismo do meio jornalístico e literário, a par da incompreensão de que se sente alvo por parte da imprensa.

4.1. “Mais d’uma redação, das que elogiam tudo, / Me tem fechado a porta” – vv.23-24 – a ironia destaca o elogio fácil do meio jornalístico, contrastando-o com a rejeição do poeta, o que é demonstração de parcialidade destes meios de comunicação.
   “Nas letras eu conheço um campo de manobras” – v.61 – o poeta ironiza os esquemas que levam à divulgação de certos autores e à rejeição de outros.

5. O prosaísmo é prova da descoberta do quotidiano como motivo poético. Há no poema vários exemplos de registo coloquial: “Dói-me a cabeça.” – v.5; “Mal ganha par sopas…” – v.16; “que vida! Coitadinha!” – v.68.
   As frases curtas dão um ritmo nervoso ao poema, e são intensificadas pelas exclamações, denunciadoras de ansiedade. Exemplo: “Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica. / Lidando sempre! E deve a conta à botica!” – vv.14-15.
   Destaca-se a tripla adjetivação do v.1 – “cruel, frenético, exigente” – que, tal como as frases curtas, contribui para um discurso rápido e nervoso, ao mesmo tempo que caracteriza diretamente o “eu” lírico.
   Existem vários exemplos de advérbios expressivos: “insensatamente” – v.7; “sempre” – v.15; “fracamente” – v.54.
   Quanto à metáfora, destaca-se a da segunda estrofe – “Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes / E os ângulo agudos” – através da qual o poeta mostra ter consciência das características inovadoras da sua arte, bem como do desagrado que estas provocam nos críticos.


PROPOSTA DE TRABALHO

Elabora um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- tema;
- assunto;
- divisão em partes;
- as semelhanças entre as duas situações aparentemente díspares;
- estado emocional do sujeito poético;
- caracterização da engomadeira;
- análise formal e recursos de estilo.

SUGESTÃO DE RESPOSTA (As palavras-chave, referentes aos tópicos da questão, estão destacadas.)

   O poema “Nevroses” caracteriza-se, ao nível temático, pela presença de diversas linhas de sentido, frequentes em outros poemas de Cesário Verde. Uma delas é a realidade como ponto de partida para uma reflexão do sujeito poético; esta reflexão, por sua vez, articula-se com a dimensão social patente na forma solidária como o “eu” lírico olha para um trabalhador desfavorecido – a engomadeira. Todavia, o sujeito poético também olha para a sua própria situação, e é a propósito desta que surge a sua crítica à parcialidade do meio jornalístico e literário.
   Percebe-se, assim, que os assuntos tratados no poema concorrem todos eles para um único tema: a crítica de uma sociedade corrupta, decadente, injusta e desumana, através da denúncia de situações de abandono (dos doentes – de que é exemplo a engomadeira; dos artistas – situação vivida pelo próprio sujeito, ao ver recusados os seus versos).
   A engomadeira é uma das mulheres que constituem a imagética feminina da poesia deste autor. Podemos caracterizá-la como uma mulher doente, tísica e esfomeada, que faz parte de uma classe trabalhadora desfavorecida, mas corajosa, e que desperta a revolta, a solidariedade e a emoção do poeta.
   O poema pode ser dividido em seis partes que correspondem à alternância de dois planos: o do sujeito poético e o da engomadeira. Nas duas primeiras estrofes, o sujeito revela o seu estado emocional: está irritado e ansioso, devido à depravação de usos e costumes que observa na sociedade; nas duas estrofes seguintes, o sujeito (e, por conseguinte, também o leitor) centra a sua atenção na engomadeira e no seu sofrimento; nas estrofes 5 a 12, é retomado o plano do sujeito, numa violenta crítica à imprensa, motivada pela rejeição dos versos do poeta por parte desta; voltando ao plano da engomadeira, as estrofes 13 e 14 focam a situação de pobreza extrema da mulher; num quinto momento, nas estrofes 15 e 16, o sujeito mostra-se mais conformado com a sua situação, “sem azedume”; finalmente, a estrofe 17 traça um paralelo entre os dois planos.
   Podemos então afirmar que existem semelhanças entre duas situações aparentemente díspares. Vejamos alguns exemplos: 1º) o sujeito trabalha curvado sobre a secretária; a mulher curva-se sobre a tábua de engomar; 2º) o poeta fuma “três maços de cigarros”; a engomadeira é lentamente asfixiada pela combustão das brasas do ferro aceso; 3º) o homem vê a sua saúde afetada pelas dores de cabeça resultantes do seu ofício de poeta e das contrariedades que este acarreta; a mulher vê a sua saúde degenerar pela ocupação a que se vê obrigada para ganhar (mal) a vida; 4º) o poeta vê recusados os seus versos; a engomadeira foi deixada pelo doutor e “morreram-lhe os parentes”.
   No âmbito da análise formal, quanto à estrutura externa, o poema é constituído por dezassete quadras, cada uma delas com três versos alexandrinos (12 sílabas métricas), seguidos de um verso de seis sílabas métricas (hexassílabo). O esquema rimático é abba, ou seja, a rima é interpolada e emparelhada. Ao nível dos recursos estilísticos destaca-se a tripla metáfora da segunda estrofe (“Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes / E os ângulo agudos”), através da qual o poeta mostra ter consciência das características inovadoras da sua arte, bem como do desagrado que estas provocam nos críticos; esta metáfora é reforçada pelo uso expressivo do advérbio – “insensatamente”; também expressiva é a adjetivação, sobretudo na caracterização do estado emocional do sujeito poético (“cruel frenético, exigente”); a ironia está patente na crítica à sociedade, particularmente à imprensa – “Arte? Não lhes convém…” –, reforçada pela interrogação; importa referir finalmente o prosaísmo da linguagem, através da utilização de expressões coloquiais, dentre as quais se destaca o diminutivo final – “Coitadinha!” – denunciador da solidariedade do sujeito em relação à pobre engomadeira, bem como da forte crítica à sociedade injusta (“Que vida!”) que a condena a este estado miserável.
(632 palavras)



SUGESTÃO DE RESPOSTA RESUMIDA (As palavras-chave, referentes aos tópicos da questão, estão destacadas.)

   O poema tem diversas linhas de sentido: a realidade como ponto de partida para uma reflexão do sujeito; a dimensão social (solidariedade em relação a um desfavorecido); a crítica à parcialidade da imprensa. Estes assuntos concorrem para um único tema: a crítica de uma sociedade injusta e desumana, através da denúncia de situações de abandono (dos doentes – a engomadeira; dos artistas – o próprio sujeito).
   A engomadeira faz parte da imagética feminina cesariana: é uma mulher tísica e esfomeada, de uma classe desfavorecida, e que desperta a solidariedade do poeta.
   O poema pode ser dividido em seis partes que correspondem à alternância de dois planos: o do sujeito poético (estrofes 1-2, 5-12 e 15-16) e o da engomadeira (estrofes 3-4 e 13-14). O sujeito revela o seu estado emocional (irritado e ansioso), critica a imprensa, e finalmente revela-se conformado; no plano da mulher, evidencia-se o sofrimento e pobreza extrema. Por fim, a estrofe 17 traça um paralelo entre os dois planos.
   Então existem semelhanças entre duas situações aparentemente díspares. Vejamos dois exemplos: 1º) o sujeito trabalha curvado sobre a secretária; a mulher sobre a tábua de engomar; 2º) o poeta vê a sua saúde afetada pelas dores de cabeça resultantes do ofício de poeta e das suas contrariedades; a engomadeira pela ocupação a que se vê obrigada.
   No âmbito da análise formal, o poema é constituído por dezassete quadras, com três versos alexandrinos e um verso hexassilábico. A rima é interpolada e emparelhada (abba). Ao nível dos recursos estilísticos destaca-se: a tripla metáfora da segunda estrofe (“Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes / E os ângulo agudos”), reforçada pelo uso expressivo do advérbio; a adjetivação expressiva (“cruel frenético, exigente”); a ironia na crítica à imprensa – “Arte? Não lhes convém…” –, reforçada pela interrogação; o prosaísmo da linguagem, particularmente no diminutivo final – “Coitadinha!” – denunciador da forte crítica à sociedade injusta ("Que vida!").
(310 palavras)

2 comentários:

  1. Muito bom! Vai ajudar-me bastante no teste de amanhã!
    Obrigada
    Beijinhos
    Continue o bom trabalho.

    ResponderExcluir
  2. LuckyClub Casino Site Review 2021
    Luckyclub Casino is a relatively new casino site that opened in 2018. You can luckyclub.live download their software for free or real money. The site has a variety of games

    ResponderExcluir