Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pelo dum regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
Proposta de solução de algumas questões de leitura orientada
do manual Plural 11, da Lisboa Editora – página 259:
1.1. A mulher é citadina, superior
e aristocrata, de ascendência britânica. É bela, sofisticada e sensual – uma mulher
fatal. Exibe uma atitude de superioridade, sendo associada à frigidez da neve,
do gelo e do metal.
1.2. Adjetivação: “aromática
e normal”; comparação: “Em si tudo me atrai como um tesoiro”; metáfora: “fundir
na minha chama”; antítese: “um arcanjo e um demónio”.
2. A relação é desigual,
uma vez que Milady está num plano superior, e o sujeito num plano de
subserviência. Os verbos contemplar, fascinar e assombrar revelam o poder da
mulher sobre o “eu” lírico. O tratamento por “vós” denuncia a distância entre
os dois. As antinomias (contradições irreconciliáveis) fere/afaga e florete/regalo
caracterizam a relação como um jogo de amor/ódio ou fascínio/humilhação.
3. O sujeito ironiza ao
sugerir que Milady se faça acompanhar pelo gelo, denunciando a sua raiva, mas,
ao mesmo tempo, a sua atração, ao afirmar que continuará a tentar derreter o
gelo do coração desta mulher: “procuro fundir na minha chama / Seu ermo coração”.
4.1. Saindo do campo
restrito da relação amorosa, o poema passa para o campo da crítica social, associando
o sujeito aos povos humilhados, e a mulher altiva à oligarquia aristocrática,
dominante e opressora.
4.2. Consciente da sua
situação privilegiada de burguês, Cesário deixa-se tocar pela vida miserável
pelos trabalhadores (“A mim o que me rodeia é o que me preocupa”, disse numa
carta ao amigo Silva Pinto). Assim, partindo de uma relação homem-mulher,
Cesário projeta o seu ideário de natureza político-social, deixando
transparecer os seus desejos de reforma social.
Análise do
poema
Tema
O sujeito poético deambula pela cidade, observando e seguindo
uma mulher que o atrai – Milady – uma mulher fatal e citadina.
Estrutura
externa
O poema é constituído por dez quadras. Os versos são
decassilábicos. A rima é cruzada, segundo o esquema rimático abab.
A
contagem das sílabas métricas é diferente da contagem das sílabas gramaticais.
As sílabas métricas são contadas até à última
sílaba tónica. Quando duas ou três vogais da mesma palavra ou de palavras
diferentes se pronunciam numa só emissão de som, ocorre a elisão.
Contar sílabas métricas é escandir ou fazer
a escansão.
Exemplo de
escansão:
Quan/do
/pa/ssa a/ro/má/ti/ca e /nor/mal
1 2
3 4
5 6 7 8 9 10
Estrutura
interna
Podemos dividir o poema em quatro partes distintas:
·
a primeira corresponde às quatro estrofes iniciais, onde o
sujeito poético confessa o fascínio que Milady
exerce sobre ele;
·
a segunda, composta pelas duas estrofes seguintes, é o relato
do encontro entre o sujeito poético e Milady;
·
a terceira parte coincide com as duas estrofes que se seguem;
aqui encontramos a resignação do sujeito poético à atitude altiva e orgulhosa
que Milady revelou quando se cruzou com ele;
·
a quarta parte corresponde às duas últimas estrofes, onde o
sujeito lírico acautela Milady
para os perigos das suas atitudes e alerta-a para a possibilidade de todo o
orgulho e altivez se poderem voltar contra ela.
O poema começa com uma apóstrofe - Milady. Não conhecemos esta
mulher, mas sabemos desde logo que todo o poema é dirigido a uma mulher de um
estatuto social superior, uma vez que o sujeito lírico se dirige a ela com a
expressão de cortesia geralmente destinada às classes sociais mais elevadas.
Esta forma de tratamento também aponta para uma relação de
criado-senhora entre o sujeito poético a mulher amada, encontrando-se ela num
plano superior, aristocrático, e ele num plano inferior, subserviente.
No entanto, "é perigoso contemplá-la, / Quando passa
aromática e normal". Porquê? Fisicamente, Milady é uma mulher bela, fascinante, sensual:
"Em si tudo me atrai como um tesouro"; "Ah! Como me estonteia e
me fascina...". O sujeito poético fica deslumbrado e em êxtase quando ela
passa.
Perante o fascínio do eu lírico, Milady mostra-se fria,
insensível. A sua postura altiva e solene fá-lo sofrer, uma vez que se sente
humilhado por esta indiferença. Milady
sabe que exerce este poder encantatório sobre os homens. Por isso, é orgulhosa
na sua postura, mostrando-se superior e tratando com desprezo os inferiores.
Então, é perigoso contemplar Milady porque a paixão que é despertada por essa contemplação
leva ao sofrimento. O seu olhar é caracterizado de forma antinómica, pois fere e
afaga ou conforta.
Face à postura de Milady,
ao "eu" lírico apenas resta a resignação. Ele sabe que ela
dificilmente mudará a sua atitude e, por isso, ironizando, diz-lhe que mantenha
como seu companheiro "o gelo", a frieza e a insensibilidade. Depois
compara-a à
imperatriz Ana de Áustria, pelos modos diplomáticos e orgulhosos, e à Fama,
altiva e teatral.
Todavia, o fascínio que o sujeito poético experimenta leva-o a
tentar derreter o gelo do coração de Milady (“procuro fundir na minha cham /
Seu ermo coração”), embora esteja consciente de que as suas tentativas são vãs.
Neste esforço inglório denota-se a subserviência amorosa em
que o sujeito poético vive devido aos encantos desta mulher. Apesar de não ser
correspondido - aliás, é ignorado por Milady
-, ele tentará derreter o gelo por se submeter às disposições desta mulher:
beijando-lhe “as brancas mãos” ou seguindo-a pelas ruas de Lisboa.
Nas duas estrofes finais, o sujeito poético acautela Milady para
que esta não
se alegre com a sua condição de rainha. Sabendo que o seu poder advém da beleza
efémera, o “eu” lírico avisa-a para não ser ousada (“não se afoite”), pois os
seus poderes vão acabar um dia e “os humilhados” (i.e. os amantes desprezados),
na sombra da sua beleza, "Para a vingança aguçam os punhais." Então,
quando esta "flor do Luxo" perder os seus poderes encantatórios, o eu
lírico vê-la-á vagueando pelas ruas, em farrapos.
Estas duas últimas estrofes são também uma crítica social ao desdém
da burguesia em relação ao proletariado, revelando a vontade de Cesário em ver
as condições sociais alterarem-se, para que aqueles que labutam diariamente
pudessem ver recompensados os seus esforços, e aqueles que vivem às custas do
trabalho alheio fossem castigados pelo seu parasitismo.
Unidade
forma / conteúdo
A temática da humilhação amorosa determina que as primeiras
estrofes sejam dedicadas ao retrato desta mulher e ao poder que exerce. Só depois
se destaca o sujeito poético e a sua subserviência.
Recursos
estilísticos (exemplos):
·
apóstrofe: “Milady” (v.1); “ó flor do Luxo” (v.37);
·
dupla adjetivação: “aromática e normal” (v.2);
·
metáfora: “gestos de neve e de metal” (v.4);
·
anáfora: “Com seu tipo…” / “Com seus gestos…” (vv.3 e 4);
·
comparação: “como um tesoiro” (v.9); “tão alta e serena como
a morte” (v.16); “como a um brilhante” (v.32);
·
sinestesia: “timbre de oiro” (v.11);
·
hipálage: “lúcido perfil” (v.12);
·
antítese: “Um arcanjo e um demónio” (v.22);
·
aliteração: em “f” nos vv.23 e 24.
Síntese
A mulher de “Deslumbramentos” é a mulher fatal, poderosa, que
humilha o sujeito poético. Ao mesmo tempo, Milady extravasa o domínio do
sentimento amoroso puramente pessoal, uma vez que representa a poderosa
oligarquia que humilha o povo.
Esta mulher corresponde ao tipo citadino artificial,
retratando os valores decadentes e a violência social. Surge na poesia de
Cesário incorporando um valor erótico que simultaneamente desperta o desejo e
arrasta para a morte.
Compare-se com os poemas seguintes:
Esplêndida
Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores.
É como o refulgir dum arrebol
Em sedas multicores.
Deita-se com langor no azul celeste
Do seu landau forrado de cetim;
E os seus negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
Velozes como a peste.
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores.
É como o refulgir dum arrebol
Em sedas multicores.
Deita-se com langor no azul celeste
Do seu landau forrado de cetim;
E os seus negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
Velozes como a peste.
É fidalga e soberba. As incensadas
Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas
Tem a altivez magnética e o bom-tom
Das cortes depravadas.
É clara como os pós à marechala,
E as mãos, que o Jock Club embalsamou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
Um amante, em Bengala.
É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar
Atrai, como a voragem!
Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas
Tem a altivez magnética e o bom-tom
Das cortes depravadas.
É clara como os pós à marechala,
E as mãos, que o Jock Club embalsamou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
Um amante, em Bengala.
É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar
Atrai, como a voragem!
Os lacaios, vão firmes na almofada;
E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com roseta, e nas librés
De forma aprimorada.
E eu vou acompanhando-a, corcovado,
No trottoir, como um doido, em convulsões,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões,
Sinistro e mal trajado.
E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.
E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
Formosa aristocrata!
No trottoir, como um doido, em convulsões,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões,
Sinistro e mal trajado.
E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.
E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
Formosa aristocrata!
Breve análise:
Este poema também apresenta uma mulher citadina, artificial e
fatal. Num ambiente urbano (“rua do Alecrim” – v.9; “No trottoir” – v.32), esta mulher sofisticada (“fidalga e soberba” –
v.11) exerce o seu fascínio sobre o sujeito poético (“Atrai como a voragem!” –
v.25), humilhando-o (“corcovado” – v.31; “mal trajado” – v.35).
O poema é constituído por nove quintilhas. Cada uma tem
quatro versos decassilábicos e um último verso hexassilábico. A rima é cruzada
(ababa).
Nas primeiras seis quintilhas, é apresentada a mulher altiva;
num segundo momento, surge o sujeito poético, disposto a renunciar à sua
independência e ao seu futuro (“porvir”) para conseguir aproximar-se da “formosa
aristocrata”.
A mulher surge dominadora, um produto do luxo, e atrai o sujeito
para a morte (“os seus negros corcéis (…) / Velozes como a peste” – vv. 8 e 10 –
associa-se aqui os cavalos negros da fidalga à doença, colocando esta mulher numa
esfera de significado associada à doença e à morte, o que é reforçado pelo
sujeito “febril”, já subjugado, no v.33).
Vaidosa
Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo por aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.
Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério
Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração, como as estátuas.
E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.
Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces
És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor... muito amor-próprio.
Breve análise:
Novamente, há aqui uma mulher fria como pedra, perfeita artificial,
que causa sofrimento ao sujeito, atraindo-o fatalmente, como uma droga (“como
um ópio”), arrastando-o para a morte.
O poema é composto por cinco quadras, de verso decassilábico.
A rima é interpolada e emparelhada, de acordo com o esquema abba.
Muito útil, obrigada!
ResponderExcluirMeus Parabéns pelas maravilhosas análises! Contribuíram e muito com meus estudos.
ResponderExcluirObrigada.
ResponderExcluir