segunda-feira, 16 de abril de 2012

Cesário Verde - Deslumbramentos

Deslumbramentos

Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pelo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!



Proposta de solução de algumas questões de leitura orientada do manual Plural 11, da Lisboa Editora – página 259:

1.1. A mulher é citadina, superior e aristocrata, de ascendência britânica. É bela, sofisticada e sensual – uma mulher fatal. Exibe uma atitude de superioridade, sendo associada à frigidez da neve, do gelo e do metal.

1.2. Adjetivação: “aromática e normal”; comparação: “Em si tudo me atrai como um tesoiro”; metáfora: “fundir na minha chama”; antítese: “um arcanjo e um demónio”.

2. A relação é desigual, uma vez que Milady está num plano superior, e o sujeito num plano de subserviência. Os verbos contemplar, fascinar e assombrar revelam o poder da mulher sobre o “eu” lírico. O tratamento por “vós” denuncia a distância entre os dois. As antinomias (contradições irreconciliáveis) fere/afaga e florete/regalo caracterizam a relação como um jogo de amor/ódio ou fascínio/humilhação.

3. O sujeito ironiza ao sugerir que Milady se faça acompanhar pelo gelo, denunciando a sua raiva, mas, ao mesmo tempo, a sua atração, ao afirmar que continuará a tentar derreter o gelo do coração desta mulher: “procuro fundir na minha chama / Seu ermo coração”.

4.1. Saindo do campo restrito da relação amorosa, o poema passa para o campo da crítica social, associando o sujeito aos povos humilhados, e a mulher altiva à oligarquia aristocrática, dominante e opressora.

4.2. Consciente da sua situação privilegiada de burguês, Cesário deixa-se tocar pela vida miserável pelos trabalhadores (“A mim o que me rodeia é o que me preocupa”, disse numa carta ao amigo Silva Pinto). Assim, partindo de uma relação homem-mulher, Cesário projeta o seu ideário de natureza político-social, deixando transparecer os seus desejos de reforma social.



Análise do poema

Tema

O sujeito poético deambula pela cidade, observando e seguindo uma mulher que o atrai – Milady – uma mulher fatal e citadina.

Estrutura externa

O poema é constituído por dez quadras. Os versos são decassilábicos. A rima é cruzada, segundo o esquema rimático abab.

A contagem das sílabas métricas é diferente da contagem das sílabas gramaticais. As sílabas métricas são contadas até à última sílaba tónica. Quando duas ou três vogais da mesma palavra ou de palavras diferentes se pronunciam numa só emissão de som, ocorre a elisão.

   Contar sílabas métricas é escandir ou fazer a escansão.

Exemplo de escansão:

Quan/do /pa/ssa a/ro/má/ti/ca e /nor/mal

 1    2  3    4   5  6  7    8    9  10

Estrutura interna

Podemos dividir o poema em quatro partes distintas:

·         a primeira corresponde às quatro estrofes iniciais, onde o sujeito poético confessa o fascínio que Milady exerce sobre ele;

·         a segunda, composta pelas duas estrofes seguintes, é o relato do encontro entre o sujeito poético e Milady;

·         a terceira parte coincide com as duas estrofes que se seguem; aqui encontramos a resignação do sujeito poético à atitude altiva e orgulhosa que Milady revelou quando se cruzou com ele;

·         a quarta parte corresponde às duas últimas estrofes, onde o sujeito lírico acautela Milady para os perigos das suas atitudes e alerta-a para a possibilidade de todo o orgulho e altivez se poderem voltar contra ela.

O poema começa com uma apóstrofe - Milady. Não conhecemos esta mulher, mas sabemos desde logo que todo o poema é dirigido a uma mulher de um estatuto social superior, uma vez que o sujeito lírico se dirige a ela com a expressão de cortesia geralmente destinada às classes sociais mais elevadas.

Esta forma de tratamento também aponta para uma relação de criado-senhora entre o sujeito poético a mulher amada, encontrando-se ela num plano superior, aristocrático, e ele num plano inferior, subserviente.

No entanto, "é perigoso contemplá-la, / Quando passa aromática e normal". Porquê? Fisicamente, Milady é uma mulher bela, fascinante, sensual: "Em si tudo me atrai como um tesouro"; "Ah! Como me estonteia e me fascina...". O sujeito poético fica deslumbrado e em êxtase quando ela passa.

Perante o fascínio do eu lírico, Milady mostra-se fria, insensível. A sua postura altiva e solene fá-lo sofrer, uma vez que se sente humilhado por esta indiferença. Milady sabe que exerce este poder encantatório sobre os homens. Por isso, é orgulhosa na sua postura, mostrando-se superior e tratando com desprezo os inferiores.

Então, é perigoso contemplar Milady porque a paixão que é despertada por essa contemplação leva ao sofrimento. O seu olhar é caracterizado de forma antinómica, pois fere e afaga ou conforta.

Face à postura de Milady, ao "eu" lírico apenas resta a resignação. Ele sabe que ela dificilmente mudará a sua atitude e, por isso, ironizando, diz-lhe que mantenha como seu companheiro "o gelo", a frieza e a insensibilidade. Depois compara-a à imperatriz Ana de Áustria, pelos modos diplomáticos e orgulhosos, e à Fama, altiva e teatral.

Todavia, o fascínio que o sujeito poético experimenta leva-o a tentar derreter o gelo do coração de Milady (“procuro fundir na minha cham / Seu ermo coração”), embora esteja consciente de que as suas tentativas são vãs.

Neste esforço inglório denota-se a subserviência amorosa em que o sujeito poético vive devido aos encantos desta mulher. Apesar de não ser correspondido - aliás, é ignorado por Milady -, ele tentará derreter o gelo por se submeter às disposições desta mulher: beijando-lhe “as brancas mãos” ou seguindo-a pelas ruas de Lisboa.

Nas duas estrofes finais, o sujeito poético acautela Milady para que esta não se alegre com a sua condição de rainha. Sabendo que o seu poder advém da beleza efémera, o “eu” lírico avisa-a para não ser ousada (“não se afoite”), pois os seus poderes vão acabar um dia e “os humilhados” (i.e. os amantes desprezados), na sombra da sua beleza, "Para a vingança aguçam os punhais." Então, quando esta "flor do Luxo" perder os seus poderes encantatórios, o eu lírico vê-la-á vagueando pelas ruas, em farrapos.

Estas duas últimas estrofes são também uma crítica social ao desdém da burguesia em relação ao proletariado, revelando a vontade de Cesário em ver as condições sociais alterarem-se, para que aqueles que labutam diariamente pudessem ver recompensados os seus esforços, e aqueles que vivem às custas do trabalho alheio fossem castigados pelo seu parasitismo.

Unidade forma / conteúdo

A temática da humilhação amorosa determina que as primeiras estrofes sejam dedicadas ao retrato desta mulher e ao poder que exerce. Só depois se destaca o sujeito poético e a sua subserviência.

Recursos estilísticos (exemplos):

·         apóstrofe: “Milady” (v.1); “ó flor do Luxo” (v.37);

·         dupla adjetivação: “aromática e normal” (v.2);

·         metáfora: “gestos de neve e de metal” (v.4);

·         anáfora: “Com seu tipo…” / “Com seus gestos…” (vv.3 e 4);

·         comparação: “como um tesoiro” (v.9); “tão alta e serena como a morte” (v.16); “como a um brilhante” (v.32);

·         sinestesia: “timbre de oiro” (v.11);

·         hipálage: “lúcido perfil” (v.12);

·         antítese: “Um arcanjo e um demónio” (v.22);

·         aliteração: em “f” nos vv.23 e 24.

Síntese

A mulher de “Deslumbramentos” é a mulher fatal, poderosa, que humilha o sujeito poético. Ao mesmo tempo, Milady extravasa o domínio do sentimento amoroso puramente pessoal, uma vez que representa a poderosa oligarquia que humilha o povo.

Esta mulher corresponde ao tipo citadino artificial, retratando os valores decadentes e a violência social. Surge na poesia de Cesário incorporando um valor erótico que simultaneamente desperta o desejo e arrasta para a morte.

Compare-se com os poemas seguintes:

Esplêndida

Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores.
É como o refulgir dum arrebol
                 Em sedas multicores.

Deita-se com langor no azul celeste
Do seu landau forrado de cetim;
E os seus negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
               Velozes como a peste.
É fidalga e soberba. As incensadas
Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas
Tem a altivez magnética e o bom-tom
                   Das cortes depravadas.

É clara como os pós à marechala,
E as mãos, que o Jock Club embalsamou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
                Um amante, em Bengala.

É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar
               Atrai, como a voragem!

Os lacaios, vão firmes na almofada;
E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com roseta, e nas librés
                   De forma aprimorada.

E eu vou acompanhando-a, corcovado,
No trottoir, como um doido, em convulsões,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões,
                 Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
                  Teu pobre trintanário.

E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
             Formosa aristocrata!


Breve análise:

Este poema também apresenta uma mulher citadina, artificial e fatal. Num ambiente urbano (“rua do Alecrim” – v.9; “No trottoir” – v.32), esta mulher sofisticada (“fidalga e soberba” – v.11) exerce o seu fascínio sobre o sujeito poético (“Atrai como a voragem!” – v.25), humilhando-o (“corcovado” – v.31; “mal trajado” – v.35).

O poema é constituído por nove quintilhas. Cada uma tem quatro versos decassilábicos e um último verso hexassilábico. A rima é cruzada (ababa).

Nas primeiras seis quintilhas, é apresentada a mulher altiva; num segundo momento, surge o sujeito poético, disposto a renunciar à sua independência e ao seu futuro (“porvir”) para conseguir aproximar-se da “formosa aristocrata”.

A mulher surge dominadora, um produto do luxo, e atrai o sujeito para a morte (“os seus negros corcéis (…) / Velozes como a peste” – vv. 8 e 10 – associa-se aqui os cavalos negros da fidalga à doença, colocando esta mulher numa esfera de significado associada à doença e à morte, o que é reforçado pelo sujeito “febril”, já subjugado, no v.33).



Vaidosa

Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo por aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração, como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces
És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor... muito amor-próprio.


Breve análise:

Novamente, há aqui uma mulher fria como pedra, perfeita artificial, que causa sofrimento ao sujeito, atraindo-o fatalmente, como uma droga (“como um ópio”), arrastando-o para a morte.

O poema é composto por cinco quadras, de verso decassilábico. A rima é interpolada e emparelhada, de acordo com o esquema abba.

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