quinta-feira, 19 de abril de 2012

Cesário Verde - Nevroses / Contrariedades

Nevroses / Contrariedades

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
            E agrado a pouca gente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos;
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
             E os ângulos agudos!

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
             E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
             Mal ganha para as sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa d’um jornal me rejeitar, há dias,
             Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
              Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
               Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
                 Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei composições nenhumas,
Senão, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
                Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
                 Deliram por Zaccone.

Um prosador, aqui, desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
                 Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nosso literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
                Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
                E fina-se ao desprezo!

Nem pão no armário, ó Deus! Chama por ela a cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a a cantarolar uma canção plangente
                Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
                 Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
                   Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
                   Que vida! Coitadinha!

                                                                                       1876


Sugestão de resposta às questões de leitura orientada do manual Plural 11:

Página 262

1. O sujeito poético está sentado à secretária e daí avista a janela de um prédio onde mora uma infeliz engomadeira. A luz está acesa (“Vejo-lhe luz no quarto” – v.67), portanto é de noite. Estes são elementos realistas, uma vez que a poesia de Cesário se apresenta como um lugar de observação do mundo e da vida. Mesmo sentado à secretária, em sua casa, é o olhar que o guia. Assim, articula o real objetivo observado com a subjetividade do seu sentir e do seu pensar. Cesário é realista porque o real é o ponto de partida para os seus versos.

2. Os planos alternados são o do sujeito poético e o da engomadeira. O poema começa com o plano do “eu” lírico, sendo interrompido nas estrofes 3 e 4 pelo plano da engomadeira. Continuam os planos a cruzar-se: o do sujeito poético nas estrofes 5-12 e 15-16; o da mulher nas estrofes 13-14. Na estrofe 17, assistimos a um paralelo entre os dois planos. Distinguimos os planos pela pessoa verbal utilizada em cada um: a 1ª pessoa no 1º plano (ex.: “Eu hoje estou” – v.1); a 3ª pessoa no 2º plano (ex.: “Chama por ela a cova” – v.53).

3. Inicialmente, o sujeito poético está irritado, ansioso e com dores de cabeça. Incomoda-o “Tanta depravação nos usos, nos costumes!”. Depois revela-se “cheio de raivas frias” face à rejeição dos seus versos, o que é percecionado pelo “eu” lírico como uma contrariedade. Finalmente, alcança algum grau de paz, quando lhe passa a “cólera” e finda “sem azedume”.

4. Neste poema, o poeta critica as más condições de vida dos trabalhadores: a saúde deplorável, a fome, as longas horas de trabalho. Ao fazer esta crítica, o poeta mostra solidariedade em relação a estes trabalhadores desfavorecidos, embora não pertença a esta classe social. Transparece assim a sua inclinação política, de feição republicana.
   O poema denuncia ainda o compadrio e o protecionismo do meio jornalístico e literário, a par da incompreensão de que se sente alvo por parte da imprensa.

4.1. “Mais d’uma redação, das que elogiam tudo, / Me tem fechado a porta” – vv.23-24 – a ironia destaca o elogio fácil do meio jornalístico, contrastando-o com a rejeição do poeta, o que é demonstração de parcialidade destes meios de comunicação.
   “Nas letras eu conheço um campo de manobras” – v.61 – o poeta ironiza os esquemas que levam à divulgação de certos autores e à rejeição de outros.

5. O prosaísmo é prova da descoberta do quotidiano como motivo poético. Há no poema vários exemplos de registo coloquial: “Dói-me a cabeça.” – v.5; “Mal ganha par sopas…” – v.16; “que vida! Coitadinha!” – v.68.
   As frases curtas dão um ritmo nervoso ao poema, e são intensificadas pelas exclamações, denunciadoras de ansiedade. Exemplo: “Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica. / Lidando sempre! E deve a conta à botica!” – vv.14-15.
   Destaca-se a tripla adjetivação do v.1 – “cruel, frenético, exigente” – que, tal como as frases curtas, contribui para um discurso rápido e nervoso, ao mesmo tempo que caracteriza diretamente o “eu” lírico.
   Existem vários exemplos de advérbios expressivos: “insensatamente” – v.7; “sempre” – v.15; “fracamente” – v.54.
   Quanto à metáfora, destaca-se a da segunda estrofe – “Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes / E os ângulo agudos” – através da qual o poeta mostra ter consciência das características inovadoras da sua arte, bem como do desagrado que estas provocam nos críticos.


PROPOSTA DE TRABALHO

Elabora um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- tema;
- assunto;
- divisão em partes;
- as semelhanças entre as duas situações aparentemente díspares;
- estado emocional do sujeito poético;
- caracterização da engomadeira;
- análise formal e recursos de estilo.

SUGESTÃO DE RESPOSTA (As palavras-chave, referentes aos tópicos da questão, estão destacadas.)

   O poema “Nevroses” caracteriza-se, ao nível temático, pela presença de diversas linhas de sentido, frequentes em outros poemas de Cesário Verde. Uma delas é a realidade como ponto de partida para uma reflexão do sujeito poético; esta reflexão, por sua vez, articula-se com a dimensão social patente na forma solidária como o “eu” lírico olha para um trabalhador desfavorecido – a engomadeira. Todavia, o sujeito poético também olha para a sua própria situação, e é a propósito desta que surge a sua crítica à parcialidade do meio jornalístico e literário.
   Percebe-se, assim, que os assuntos tratados no poema concorrem todos eles para um único tema: a crítica de uma sociedade corrupta, decadente, injusta e desumana, através da denúncia de situações de abandono (dos doentes – de que é exemplo a engomadeira; dos artistas – situação vivida pelo próprio sujeito, ao ver recusados os seus versos).
   A engomadeira é uma das mulheres que constituem a imagética feminina da poesia deste autor. Podemos caracterizá-la como uma mulher doente, tísica e esfomeada, que faz parte de uma classe trabalhadora desfavorecida, mas corajosa, e que desperta a revolta, a solidariedade e a emoção do poeta.
   O poema pode ser dividido em seis partes que correspondem à alternância de dois planos: o do sujeito poético e o da engomadeira. Nas duas primeiras estrofes, o sujeito revela o seu estado emocional: está irritado e ansioso, devido à depravação de usos e costumes que observa na sociedade; nas duas estrofes seguintes, o sujeito (e, por conseguinte, também o leitor) centra a sua atenção na engomadeira e no seu sofrimento; nas estrofes 5 a 12, é retomado o plano do sujeito, numa violenta crítica à imprensa, motivada pela rejeição dos versos do poeta por parte desta; voltando ao plano da engomadeira, as estrofes 13 e 14 focam a situação de pobreza extrema da mulher; num quinto momento, nas estrofes 15 e 16, o sujeito mostra-se mais conformado com a sua situação, “sem azedume”; finalmente, a estrofe 17 traça um paralelo entre os dois planos.
   Podemos então afirmar que existem semelhanças entre duas situações aparentemente díspares. Vejamos alguns exemplos: 1º) o sujeito trabalha curvado sobre a secretária; a mulher curva-se sobre a tábua de engomar; 2º) o poeta fuma “três maços de cigarros”; a engomadeira é lentamente asfixiada pela combustão das brasas do ferro aceso; 3º) o homem vê a sua saúde afetada pelas dores de cabeça resultantes do seu ofício de poeta e das contrariedades que este acarreta; a mulher vê a sua saúde degenerar pela ocupação a que se vê obrigada para ganhar (mal) a vida; 4º) o poeta vê recusados os seus versos; a engomadeira foi deixada pelo doutor e “morreram-lhe os parentes”.
   No âmbito da análise formal, quanto à estrutura externa, o poema é constituído por dezassete quadras, cada uma delas com três versos alexandrinos (12 sílabas métricas), seguidos de um verso de seis sílabas métricas (hexassílabo). O esquema rimático é abba, ou seja, a rima é interpolada e emparelhada. Ao nível dos recursos estilísticos destaca-se a tripla metáfora da segunda estrofe (“Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes / E os ângulo agudos”), através da qual o poeta mostra ter consciência das características inovadoras da sua arte, bem como do desagrado que estas provocam nos críticos; esta metáfora é reforçada pelo uso expressivo do advérbio – “insensatamente”; também expressiva é a adjetivação, sobretudo na caracterização do estado emocional do sujeito poético (“cruel frenético, exigente”); a ironia está patente na crítica à sociedade, particularmente à imprensa – “Arte? Não lhes convém…” –, reforçada pela interrogação; importa referir finalmente o prosaísmo da linguagem, através da utilização de expressões coloquiais, dentre as quais se destaca o diminutivo final – “Coitadinha!” – denunciador da solidariedade do sujeito em relação à pobre engomadeira, bem como da forte crítica à sociedade injusta (“Que vida!”) que a condena a este estado miserável.
(632 palavras)



SUGESTÃO DE RESPOSTA RESUMIDA (As palavras-chave, referentes aos tópicos da questão, estão destacadas.)

   O poema tem diversas linhas de sentido: a realidade como ponto de partida para uma reflexão do sujeito; a dimensão social (solidariedade em relação a um desfavorecido); a crítica à parcialidade da imprensa. Estes assuntos concorrem para um único tema: a crítica de uma sociedade injusta e desumana, através da denúncia de situações de abandono (dos doentes – a engomadeira; dos artistas – o próprio sujeito).
   A engomadeira faz parte da imagética feminina cesariana: é uma mulher tísica e esfomeada, de uma classe desfavorecida, e que desperta a solidariedade do poeta.
   O poema pode ser dividido em seis partes que correspondem à alternância de dois planos: o do sujeito poético (estrofes 1-2, 5-12 e 15-16) e o da engomadeira (estrofes 3-4 e 13-14). O sujeito revela o seu estado emocional (irritado e ansioso), critica a imprensa, e finalmente revela-se conformado; no plano da mulher, evidencia-se o sofrimento e pobreza extrema. Por fim, a estrofe 17 traça um paralelo entre os dois planos.
   Então existem semelhanças entre duas situações aparentemente díspares. Vejamos dois exemplos: 1º) o sujeito trabalha curvado sobre a secretária; a mulher sobre a tábua de engomar; 2º) o poeta vê a sua saúde afetada pelas dores de cabeça resultantes do ofício de poeta e das suas contrariedades; a engomadeira pela ocupação a que se vê obrigada.
   No âmbito da análise formal, o poema é constituído por dezassete quadras, com três versos alexandrinos e um verso hexassilábico. A rima é interpolada e emparelhada (abba). Ao nível dos recursos estilísticos destaca-se: a tripla metáfora da segunda estrofe (“Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes / E os ângulo agudos”), reforçada pelo uso expressivo do advérbio; a adjetivação expressiva (“cruel frenético, exigente”); a ironia na crítica à imprensa – “Arte? Não lhes convém…” –, reforçada pela interrogação; o prosaísmo da linguagem, particularmente no diminutivo final – “Coitadinha!” – denunciador da forte crítica à sociedade injusta ("Que vida!").
(310 palavras)

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Cesário Verde - Deslumbramentos

Deslumbramentos

Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pelo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!



Proposta de solução de algumas questões de leitura orientada do manual Plural 11, da Lisboa Editora – página 259:

1.1. A mulher é citadina, superior e aristocrata, de ascendência britânica. É bela, sofisticada e sensual – uma mulher fatal. Exibe uma atitude de superioridade, sendo associada à frigidez da neve, do gelo e do metal.

1.2. Adjetivação: “aromática e normal”; comparação: “Em si tudo me atrai como um tesoiro”; metáfora: “fundir na minha chama”; antítese: “um arcanjo e um demónio”.

2. A relação é desigual, uma vez que Milady está num plano superior, e o sujeito num plano de subserviência. Os verbos contemplar, fascinar e assombrar revelam o poder da mulher sobre o “eu” lírico. O tratamento por “vós” denuncia a distância entre os dois. As antinomias (contradições irreconciliáveis) fere/afaga e florete/regalo caracterizam a relação como um jogo de amor/ódio ou fascínio/humilhação.

3. O sujeito ironiza ao sugerir que Milady se faça acompanhar pelo gelo, denunciando a sua raiva, mas, ao mesmo tempo, a sua atração, ao afirmar que continuará a tentar derreter o gelo do coração desta mulher: “procuro fundir na minha chama / Seu ermo coração”.

4.1. Saindo do campo restrito da relação amorosa, o poema passa para o campo da crítica social, associando o sujeito aos povos humilhados, e a mulher altiva à oligarquia aristocrática, dominante e opressora.

4.2. Consciente da sua situação privilegiada de burguês, Cesário deixa-se tocar pela vida miserável pelos trabalhadores (“A mim o que me rodeia é o que me preocupa”, disse numa carta ao amigo Silva Pinto). Assim, partindo de uma relação homem-mulher, Cesário projeta o seu ideário de natureza político-social, deixando transparecer os seus desejos de reforma social.



Análise do poema

Tema

O sujeito poético deambula pela cidade, observando e seguindo uma mulher que o atrai – Milady – uma mulher fatal e citadina.

Estrutura externa

O poema é constituído por dez quadras. Os versos são decassilábicos. A rima é cruzada, segundo o esquema rimático abab.

A contagem das sílabas métricas é diferente da contagem das sílabas gramaticais. As sílabas métricas são contadas até à última sílaba tónica. Quando duas ou três vogais da mesma palavra ou de palavras diferentes se pronunciam numa só emissão de som, ocorre a elisão.

   Contar sílabas métricas é escandir ou fazer a escansão.

Exemplo de escansão:

Quan/do /pa/ssa a/ro/má/ti/ca e /nor/mal

 1    2  3    4   5  6  7    8    9  10

Estrutura interna

Podemos dividir o poema em quatro partes distintas:

·         a primeira corresponde às quatro estrofes iniciais, onde o sujeito poético confessa o fascínio que Milady exerce sobre ele;

·         a segunda, composta pelas duas estrofes seguintes, é o relato do encontro entre o sujeito poético e Milady;

·         a terceira parte coincide com as duas estrofes que se seguem; aqui encontramos a resignação do sujeito poético à atitude altiva e orgulhosa que Milady revelou quando se cruzou com ele;

·         a quarta parte corresponde às duas últimas estrofes, onde o sujeito lírico acautela Milady para os perigos das suas atitudes e alerta-a para a possibilidade de todo o orgulho e altivez se poderem voltar contra ela.

O poema começa com uma apóstrofe - Milady. Não conhecemos esta mulher, mas sabemos desde logo que todo o poema é dirigido a uma mulher de um estatuto social superior, uma vez que o sujeito lírico se dirige a ela com a expressão de cortesia geralmente destinada às classes sociais mais elevadas.

Esta forma de tratamento também aponta para uma relação de criado-senhora entre o sujeito poético a mulher amada, encontrando-se ela num plano superior, aristocrático, e ele num plano inferior, subserviente.

No entanto, "é perigoso contemplá-la, / Quando passa aromática e normal". Porquê? Fisicamente, Milady é uma mulher bela, fascinante, sensual: "Em si tudo me atrai como um tesouro"; "Ah! Como me estonteia e me fascina...". O sujeito poético fica deslumbrado e em êxtase quando ela passa.

Perante o fascínio do eu lírico, Milady mostra-se fria, insensível. A sua postura altiva e solene fá-lo sofrer, uma vez que se sente humilhado por esta indiferença. Milady sabe que exerce este poder encantatório sobre os homens. Por isso, é orgulhosa na sua postura, mostrando-se superior e tratando com desprezo os inferiores.

Então, é perigoso contemplar Milady porque a paixão que é despertada por essa contemplação leva ao sofrimento. O seu olhar é caracterizado de forma antinómica, pois fere e afaga ou conforta.

Face à postura de Milady, ao "eu" lírico apenas resta a resignação. Ele sabe que ela dificilmente mudará a sua atitude e, por isso, ironizando, diz-lhe que mantenha como seu companheiro "o gelo", a frieza e a insensibilidade. Depois compara-a à imperatriz Ana de Áustria, pelos modos diplomáticos e orgulhosos, e à Fama, altiva e teatral.

Todavia, o fascínio que o sujeito poético experimenta leva-o a tentar derreter o gelo do coração de Milady (“procuro fundir na minha cham / Seu ermo coração”), embora esteja consciente de que as suas tentativas são vãs.

Neste esforço inglório denota-se a subserviência amorosa em que o sujeito poético vive devido aos encantos desta mulher. Apesar de não ser correspondido - aliás, é ignorado por Milady -, ele tentará derreter o gelo por se submeter às disposições desta mulher: beijando-lhe “as brancas mãos” ou seguindo-a pelas ruas de Lisboa.

Nas duas estrofes finais, o sujeito poético acautela Milady para que esta não se alegre com a sua condição de rainha. Sabendo que o seu poder advém da beleza efémera, o “eu” lírico avisa-a para não ser ousada (“não se afoite”), pois os seus poderes vão acabar um dia e “os humilhados” (i.e. os amantes desprezados), na sombra da sua beleza, "Para a vingança aguçam os punhais." Então, quando esta "flor do Luxo" perder os seus poderes encantatórios, o eu lírico vê-la-á vagueando pelas ruas, em farrapos.

Estas duas últimas estrofes são também uma crítica social ao desdém da burguesia em relação ao proletariado, revelando a vontade de Cesário em ver as condições sociais alterarem-se, para que aqueles que labutam diariamente pudessem ver recompensados os seus esforços, e aqueles que vivem às custas do trabalho alheio fossem castigados pelo seu parasitismo.

Unidade forma / conteúdo

A temática da humilhação amorosa determina que as primeiras estrofes sejam dedicadas ao retrato desta mulher e ao poder que exerce. Só depois se destaca o sujeito poético e a sua subserviência.

Recursos estilísticos (exemplos):

·         apóstrofe: “Milady” (v.1); “ó flor do Luxo” (v.37);

·         dupla adjetivação: “aromática e normal” (v.2);

·         metáfora: “gestos de neve e de metal” (v.4);

·         anáfora: “Com seu tipo…” / “Com seus gestos…” (vv.3 e 4);

·         comparação: “como um tesoiro” (v.9); “tão alta e serena como a morte” (v.16); “como a um brilhante” (v.32);

·         sinestesia: “timbre de oiro” (v.11);

·         hipálage: “lúcido perfil” (v.12);

·         antítese: “Um arcanjo e um demónio” (v.22);

·         aliteração: em “f” nos vv.23 e 24.

Síntese

A mulher de “Deslumbramentos” é a mulher fatal, poderosa, que humilha o sujeito poético. Ao mesmo tempo, Milady extravasa o domínio do sentimento amoroso puramente pessoal, uma vez que representa a poderosa oligarquia que humilha o povo.

Esta mulher corresponde ao tipo citadino artificial, retratando os valores decadentes e a violência social. Surge na poesia de Cesário incorporando um valor erótico que simultaneamente desperta o desejo e arrasta para a morte.

Compare-se com os poemas seguintes:

Esplêndida

Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores.
É como o refulgir dum arrebol
                 Em sedas multicores.

Deita-se com langor no azul celeste
Do seu landau forrado de cetim;
E os seus negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
               Velozes como a peste.
É fidalga e soberba. As incensadas
Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas
Tem a altivez magnética e o bom-tom
                   Das cortes depravadas.

É clara como os pós à marechala,
E as mãos, que o Jock Club embalsamou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
                Um amante, em Bengala.

É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar
               Atrai, como a voragem!

Os lacaios, vão firmes na almofada;
E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com roseta, e nas librés
                   De forma aprimorada.

E eu vou acompanhando-a, corcovado,
No trottoir, como um doido, em convulsões,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões,
                 Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
                  Teu pobre trintanário.

E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
             Formosa aristocrata!


Breve análise:

Este poema também apresenta uma mulher citadina, artificial e fatal. Num ambiente urbano (“rua do Alecrim” – v.9; “No trottoir” – v.32), esta mulher sofisticada (“fidalga e soberba” – v.11) exerce o seu fascínio sobre o sujeito poético (“Atrai como a voragem!” – v.25), humilhando-o (“corcovado” – v.31; “mal trajado” – v.35).

O poema é constituído por nove quintilhas. Cada uma tem quatro versos decassilábicos e um último verso hexassilábico. A rima é cruzada (ababa).

Nas primeiras seis quintilhas, é apresentada a mulher altiva; num segundo momento, surge o sujeito poético, disposto a renunciar à sua independência e ao seu futuro (“porvir”) para conseguir aproximar-se da “formosa aristocrata”.

A mulher surge dominadora, um produto do luxo, e atrai o sujeito para a morte (“os seus negros corcéis (…) / Velozes como a peste” – vv. 8 e 10 – associa-se aqui os cavalos negros da fidalga à doença, colocando esta mulher numa esfera de significado associada à doença e à morte, o que é reforçado pelo sujeito “febril”, já subjugado, no v.33).



Vaidosa

Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo por aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração, como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces
És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor... muito amor-próprio.


Breve análise:

Novamente, há aqui uma mulher fria como pedra, perfeita artificial, que causa sofrimento ao sujeito, atraindo-o fatalmente, como uma droga (“como um ópio”), arrastando-o para a morte.

O poema é composto por cinco quadras, de verso decassilábico. A rima é interpolada e emparelhada, de acordo com o esquema abba.

domingo, 15 de abril de 2012

OS MAIAS - O Passeio Final

Se tens o manual Plural 11, da Lisboa Editora, aqui tens mais propostas de resolução de algumas questões da leitura orientada:

Página 224
1. Representando Camões, a estátua simboliza a grandeza e a glória nacionais do passado. O contraste dessa época áurea com a decadência do presente explica a tristeza.
2. A repetição de “mesmo” acentua a ideia de estagnação, de não evolução da cidade e, por extensão, do país.
2.1. “Reentrando”; “nada mudara”; “conservava”; “reconhecia (…) sujeitos que lá deixara (…) já assim encostados, já assim melancólicos. (…) lá estacionavam ainda…”.
3. Os dois tipos de vadios distinguem-se pela sua condição social, percetível através da sua vestimenta (“em farrapos” / “de sobrecasaca”). A crítica visa especialmente o segundo grupo, os que politicavam, tão inúteis socialmente como os primeiros.
Página 225
1. “Entristecia”, “caixões”, “mancha lívida de uma caveira”, “friagem regelava”, “amortalhados”, “cheiro de múmia”, “sufocados”, “estrangulados”, “lágrimas”, “morria um resto de sol”, “infernal”, “sudários”, “envelheciam”, “prantozinho”, “desaparecendo”, “devorado”, “um raio de sol morria”, “cinza do crepúsculo”.
2. O excerto contém uma referência ao quadro da Condessa de Runa, que parecia também querer abandonar a casa, para “consumar a dispersão da sua raça”. Existem também referências a espaços religiosos (como o “claustro abandonado”), e à tristeza do jardim (como um “retiro esquecido”).
4. O ataque de espirros de Carlos e Ega, e a canelada do último contra um sofá, servem de contraponto cómico ao dramatismo da situação.
Página 227
1. O excerto situa-se no capítulo final do romance.
2. Carlos considera que é impossível evitar o falhanço; faça-se o que se fizer, não se pode fugir à desilusão, porque a vida nunca resulta naquilo que esperávamos dela.
4.1. O tempo cronológico vivido por Carlos no Ramalhete é objetivamente curto (não chegou a dois anos). No entanto, o tempo psicológico, ou seja, o tempo percecionado subjetivamente por Carlos, foi bastante mais longo, uma vez que foi um período importante e intenso.
4.2. — Não me admiro. Só aqui viveste realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida – a paixão!
5. Ser romântico era para eles ser insensato, governado apenas pelos sentimentos, sem usar o pensamento racional. Por outro lado, ser racional era ser sem sabor, viver sem emoções, sempre lógico, enfim, o oposto de romântico.
6. Está completamente de acordo: aceitando o princípio de que a vida resulta sempre em desilusão, faz sentido não ter quaisquer expetativas, evitando assim as contrariedades e a frustração.
7. Se a felicidade estava em nada desejar, o facto de se esforçarem, correndo para apanhar o americano, não faz, aparentemente, sentido. Além disso, o fatalismo muçulmano inclui não ter contrariedades, o que torna incoerente o facto de Carlos lamentar o esquecimento do “paiozinho”. Estas incoerências refletem o próprio percurso incoerente de Carlos.

Mais algumas ideias sobre o episódio do Passeio Final:

A ideologia do trágico no Passeio Final

  O pessimismo existencial das palavras de Carlos constitui a mais radical negação do Naturalismo determinista e positivista.

  Este diálogo final desempenha a função de um epílogo ideológico que abarca o nível da intriga e o da crónica de costumes: desiludidos por uma existência marcada pela tragédia e pelo falhanço social, resta a Carlos e Ega a opção do fatalismo, que é , ao mesmo tempo, a descrença nas suas próprias possibilidades.

  No entanto, esta atitude de desprendimento contém ela própria uma faceta trágica: a impossibilidade de assumir coerentemente esta teoria de vida, uma vez que os ideais resultam em desilusão e poeira.

  Na verdade, bastou a lembrança de um “paiozinho com ervilhas” para eliminar a atitude de desprendimento e reavivar a vitalidade humana numa corrida ofegante.

A visão pessimista do Portugal da Regeneração

  No episódio do Passeio Final, Eça destaca a decrepitude e o aspeto lúgubre das pessoas, motivadas por valores que não acompanharam a evolução dos tempos.

  Em Lisboa as pessoas traduziam a decadência do país, caracterizando-se fundamentalmente pela ociosidade crónica que as levava a vagabundear, numa moleza doentia.

  Eça pretendia dissecar o período da Regeneração, posterior ao regime liberal, um momento politicamente estável (após a revolta chefiada por Saldanha, em abril de 1851), mas económica e culturalmente decadente.

  A “regeneração” do país não se efetivara de facto; este termo deveria ter significado o progresso a todos os níveis, de modo a situar Portugal entre os povos civilizados; porém, cerca de trinta anos após as lutas liberais, o país não renascera.

Aspetos fundamentais da sociedade portuguesa dos finais do século XIX apresentados no Passeio Final

  Imobilismo total. “Nada mudara.” (pág. 697).

  Provincianismo da sociedade lisboeta. “…com uma curiosidade de província, examinavam aquele homem de tão alta elegância…” (p.699).

  Falta de fôlego nacional para acabar os grandes empreendimentos. “— Ora aí tens tu essa Avenida! Hem?... Já não é mau! (…) E ao fundo a colina verde, salpicada de árvores, os terrenos de Vale de Pereiro, punham um brusco remate campestre àquele curto rompante de luxo barato – que partira para transformar a velha cidade, e estacara logo, com o fôlego curto, entre montões de cascalho.” (pp.701 e 702).

  Imitação acrítica do estrangeiro. “(…) Porque essa simples forma de botas explicava todo o Portugal contemporâneo. Via-se por ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, à D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se à moderna: mas, sem originalidade, sem força, sem carácter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro (…). Somente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e civilizado – exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura.” (p.703)

  Decadência dos valores genuínos. “(…) no escuro bairro de S. Vicente e da Sé, os palacetes decrépitos, com vistas saudosas para a barra, enormes brasões nas paredes rachadas, onde, entre a maledicência, a devoção e a bisca, arrasta os seus derradeiros dia, caquética e caturra, a velha Lisboa fidalga!” (p.704).

OS MAIAS - O Sarau do Teatro da Trindade

Algumas ideias sobre este episódio:

  O Sarau destinava-se a ajudar as vítimas das cheias do Ribatejo.

  Revela-nos aspetos caricatos da sociedade lisboeta: o gosto pela verborreia oca; a total falta de sensibilidade estética para apreciar o talento; a lágrima fácil perante o exagero poético romântico; a superficialidade das conversas.

  O primeiro interveniente é Rufino, um orador tido como sublime; a sua retórica vazia, quase barroca, traduz a sensibilidade literária da época; a sua bajulação à família real evidencia a idolatria em relação a quem o pode promover.

  Cruges representa o raro talento verdadeiro, incompreendido e alvo de risos.

  O último interveniente é Alencar, após “um intervalo de dez minutos como no circo”. O poeta declamou “A Democracia”, aliando poesia e política, numa encenação exuberante e sentimentalista, ultrarromântica, que termina, entre fortes aplausos, com propostas sociais utópicas de uma República em que o milionário, sorrindo, abre os braços ao operário.

  É neste episódio, aparentemente desligado por completo da intriga principal, que Ega entra em contacto com o Sr. Guimarães, personagem que se revela fundamental para o final trágico da intriga.


Se tens o manual Plural 11, da Lisboa Editora, aqui ficam algumas propostas de resolução das questões de leitura orientada da página 222:

1. A sátira social é dirigida ao atraso cultural e ao provincianismo do país. Por exemplo, a baronesa fala com desdém da música clássica de Cruges, sugerindo que este tocasse uma cantiga popular; ao mesmo tempo, elogia a ridícula declamação do Rufino. Também as outras senhoras mostram ignorância quanto à composição de Beethoven, chegando a marquesa do Soutal a designá-la por “Sonata Pateta”. Tudo isto provoca riso e gera desrespeito face à atuação de Cruges.

2. A confusão com o nome da sonata é o fator que gera o riso. A sonata, que é patética ou comovente, deveria gerar tristeza, suscitar piedade; porém faz o contrário, tornando-se de facto pateta, ou tola. Este contraste contribui para o cómico da situação.

3. Cruges fica atrapalhado e nervoso face ao desrespeito e ruído do público, acabando por abandonar o palco, frustrado e trémulo.

4. Esta passagem confirma a caracterização de Cruges como artista incompreendido num país que não está culturalmente preparado para acolher o talento. Vitorino está consciente de que nunca será compreendido como artista clássico. No fim do romance, quando Carlos regressa  após 10 anos de ausência, o maestro já é uma glória nacional, mas apenas porque se rendeu ao gosto popular, abandonando a música de qualidade.

OS MAIAS - o narrador

Aqui ficam algumas ideias sobre o narrador.


ž  O narrador é heterodiegético, ou seja, não é uma personagem da história.

ž  Assume, geralmente, uma atitude de observador.

ž  Marcas linguísticas: verbos na 3ª pessoa; pronomes e determinantes na 3ª pessoa; discurso indireto livre (nesta obra).

ž  O narrador omnisciente sabe tudo sobre as personagens: o seu passado, presente e futuro, bem como os seus sentimentos e desejos mais íntimos. É como um deus que tudo viu e tudo sabe. Verificamos que o narrador do romance conhece todo o passado dos Maias, sabendo mais sobre eles do que as próprias personagens. Isto permite-lhe arquitetar o romance, jogando com várias técnicas narrativas ao nível do tempo do discurso (por exemplo, a analepse).

ž  Um exemplo concreto do conhecimento do narrador relativamente à interioridade das personagens é o momento em que mostra conhecer os sentimentos que Afonso não expressa quando o filho, Pedro, surge perante ele, desesperado com a fuga da Monforte. (Final do cap. II – p. 44 – “Uma sombria tarde de Dezembro…”)

ž  O ponto de vista, ou perspetiva narrativa, corresponde à adoção, por parte do narrador, de uma determinada posição para contar a história.

ž  Perspetivar a diegese de acordo com uma determinada focalização não é só ver a diegese por certos olhos; é tomar em relação a ela uma posição afetiva e/ou ideológica. Constituir-se-á assim uma imagem particular da história, configurada pela subjetividade da personagem que a perspetiva.

ž  N’Os Maias é fundamentalmente sobre Carlos que recai a focalização interna: as outras personagens dependem da sua visão do mundo e é a sua subjetividade que atua como elemento filtrante da realidade observada.

ž  A focalização interna valoriza o universo psicológico de Carlos e proporciona uma visão crítica da sociedade.

ž  O ponto de vista de Carlos é sobretudo evidente nas passagens em que a obra nos dá a conhecer Maria Eduarda (o primeiro avistamento, o primeiro encontro,…). Aliás, parece ser na caracterização desta personagem feminina que o narrador mais abdica da sua omnisciência. Mas também existem outros exemplos da focalização interna de Carlos, como o jantar do Hotel Central ou o Passeio Final, em que a visão crítica da decadência do país é filtrada pelo olhar do protagonista.

ž  Ao privilegiar a focalização interna, o narrador vê, sente e julga os eventos ficcionais com e como a personagem, o que, por outras palavras, significa que as leis da subjetividade da personagem condicionam a imagem da diegese que é veiculada.

ž  A focalização interna adota por vezes a perspetiva de João da Ega. Um exemplo relevante deste ponto de vista são os episódios do jornal “A Tarde” e do Sarau no Teatro da Trindade.

ž  Outro exemplo digno de nota em termos de focalização interna, é o ponto de vista de Vilaça (pai), através do qual se apresenta a educação de Carlos em Santa Olávia.

ž  O narrador pode também optar pela focalização externa, ou seja, a simples referência aos aspetos exteriores da história contada: por exemplo, o aspeto físico das personagens, a sua vestimenta, ou os espaços físicos onde se movimentam.

ž  Esta atitude narrativa é especialmente empenhada na superficialidade e transmite, com objetividade, apenas aquilo que é observável.

ž  No entanto, n’Os Maias, a objetividade é, muitas vezes, apenas aparente. Assim, existem vários exemplos de utilização de adjetivos, de advérbios e de diminutivos que conferem subjetividade aos eventos narrados.

ž  Os exemplos que mais se destacam correspondem à descrição de Eusebiozinho ou à de Dâmaso. Encontramos aqui a focalização interventiva, com a função de comentário, aliada à adesão ou negação a/de comportamentos ou formas de estar das personagens. Pode ter uma função ideológica, por exemplo na apresentação da personagem Alencar, já velho, no jantar do Hotel Central.